Os gigantes impactados pela inundação de 2024: um triste relato

12 de junho de 2024

Meus planos mudaram, assim como de todos os gaúchos nesse último mês de maio. Havia me planejado para abordar nesta coluna a (R)evolução por qual passa a arquitetura dos edifícios no Brasil, mas a maior catástrofe climática da história do Rio Grande do Sul me leva a escrever sobre esse triste episódio.

Os números da tragédia são impressionantes. Em regiões do estado, choveu o equivalente a 6 meses em apenas 3 dias. Em Porto Alegre, a chuva superou em 455% a precipitação média mensal para maio. Consequentemente, a enxurrada de água nos rios que desaguam no Delta do Jacuí fez com que o Guaíba transbordasse a nível nunca visto e inundasse as regiões mais baixas da capital e região metropolitana. 

O Centro Histórico foi extremamente afetado nas partes mais baixas, onde estão localizados os edifícios mais altos da cidade. São edificações construídas há 60 anos, abordadas em artigo do Caos Planejado, período em que adensar e verticalizar eram sinônimos de cidades verdadeiramente compactas. Nas visitas ao Centro, pude registrar os impactos causados nesses gigantes de Porto Alegre.

A primeira visita ocorreu no primeiro dia de sol, logo após a enxurrada, no domingo do dia 5 de maio. Já não havia energia elétrica, fornecimento de água e sinal de celular e internet. As águas do Guaíba já haviam avançado ao seu ponto máximo, cobrindo ruas, praças e ilhando a Prefeitura e o Mercado Público. Era um verdadeiro silêncio na região.

Também estava ilhado um gigante de 32 andares e 107 metros de altura. Nas fotos, percebe-se como ficou o Ed. Santa Cruz, o mais alto da capital. Só era possível entrar no maior edifício de POA de barco, bote ou jet ski. Provavelmente, os arquitetos Carlos de Holanda Mendonça e Jayme Luna dos Santos, que o projetaram de 1956 a 1961, jamais imaginaram isso acontecendo. 

Ed. Santa Cruz ilhado pelas águas do Guaíba. Foto: Luís H B Villanova

A segunda visita, no dia 21, foi quando o nível do Guaíba baixou suficientemente para caminhar pela região inundada. Havia muita lama e os comerciantes começavam a limpeza em suas lojas devastadas. Na mais famosa rua de comércio popular, a Voluntários da Pátria, o cheiro era terrível: esgoto, peixe podre e detergente. O mais chocante era a cena dos lojistas amontoando fora das lojas – como lixo – os estoques de roupas encharcadas de barro e pessoas mais humildes recolhendo-as para levar para casa.

No eixo da perspectiva dessa via, encontra-se, o que poucos sabem, o segundo edifício mais alto da capital, o Ed. Coliseu com 30 andares e 100 metros de altura. No pilar, observava-se a marca atingida pela inundação, 1,58 metros, e uma bomba instalada no térreo sugava a água lamacenta impregnada no arranha-céu. Iniciava-se ali tempos de reconstrução.

Ed. Coliseu ao fundo da R. Voluntários da Pátria e as marcas da inundação. Foto: Luís H B Villanova

No sábado, dia 25, voltei ao Centro depois de novas chuvas torrenciais. Parte das áreas que já estavam secas, ficaram alagadas de novo. Na Rua dos Andradas, em outro emblemático edifício alto, o Cacique, limpavam sua calçada e fachada. Na frente da edificação, uma retroescavadeira retirando a lama da via.

Já parte da Praça da Alfândega, onde fica o edifício Sede do Banrisul, outro gigante da capital gaúcha, ainda estava alagada. Uma de suas entradas, na R. Caldas Júnior, continuava inacessível pelo alagamento. Do outro lado, na praça, parte da agência já podia ser acessada. Assim como no Ed. Coliseu, a marca nos pilares revela o nível que o Guaíba atingiu.

Perto do Mercado Público, a Galeria do Rosário seguia fechada sem perspectiva de reabertura. Além de uma galeria de lojas, é um famoso e movimentado corredor de passagem entre as quadras do Centro de Porto Alegre. Sobre ela, está um polêmico – devido aos seus pouquíssimos recuos laterais – gigante da cidade. Mesmo passados 20 dias da inundação, continuava um grande silêncio no local. 

Ed. Cacique (superior), Sede do Banrisul (inferior esquerda e inferior meio), Galeria do Rosário (inferior direita). Foto: Luís H B Villanova

Os amantes dos edifícios altos e da arquitetura como eu nunca imaginaram que isso iria acontecer, pois teriam muros, diques e casas de bombas para proteger não só esses gigantes, mas a cidade em geral. 

Agora, se gigantes de aço e concreto passaram por essa situação, imaginem as milhares de pessoas de carne, osso e média de 1,67 metros de altura que foram afetadas? O que não aconteceu nos mais de 400 mil domicílios afetados por essa catástrofe?

Esta coluna é mais do que relatar o ocorrido com os arranha-céus de POA. É externar uma pequena parcela da dimensão da tragédia vivida no meu estado, o forte e aguerrido Rio Grande do Sul.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Mestre em Arquitetura e urbanismo (Uniritter/Mackenzie); Doutorando em arquitetura (PROPAR/UFRGS); Membro do Council on Tall Building and Urban Habitat (CTBUH). (luishbv@gmail.com)
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