Retrofit como uma das respostas à crise habitacional em Porto Alegre
Foto: Bruna Cabrera/Flickr

Retrofit como uma das respostas à crise habitacional em Porto Alegre

Após as enchentes no Rio Grande do Sul, surge uma necessidade urgente de viabilizar moradia para as pessoas cujas casas foram atingidas. O Retrofit pode ajudar na solução do problema.

11 de julho de 2024

As enchentes ocorridas no Rio Grande do Sul no mês de maio causaram profundos impactos ambientais, sociais e econômicos, ainda difíceis de serem completamente dimensionados. Um aspecto amplamente atingido foi o habitacional, visto que milhares de moradias foram invadidas pela água e parte delas foi permanentemente inviabilizada. 

Discorrendo especificamente sobre Porto Alegre, segundo levantamento da Prefeitura, cerca de 160 mil pessoas e 39 mil edificações foram afetadas nesse desastre, e a necessidade habitacional mapeada é de mais de 20 mil unidades. Um estudo do Observatório das Metrópoles evidencia que a população de baixa renda foi a mais impactada, e que há uma discrepância no recorte de raça, onde bairros com maior proporção de negros e pardos foram os mais atingidos. 

Imagem: Observatório das Metrópoles

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Em paralelo a isso, a região central de Porto Alegre apresenta um grande número de edifícios ociosos. De acordo com um levantamento da Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura (Asbea-RS), em conjunto com incorporadoras parceiras, estima-se que existam pelo menos 150.000 m² em imóveis desocupados ou subutilizados no Centro Histórico, entre edifícios públicos e privados. Essas edificações existentes poderiam suprir parte da demanda por habitação ao passarem por obras de Retrofit. 

Retrofit é o processo de atualização dos sistemas de uma edificação, incorporando novas tecnologias, adaptando às normas atuais e prolongando sua vida útil. Essa prática é bastante recorrente na Europa e nos Estados Unidos, representando cerca de 70% da produção imobiliária em países como Holanda e Inglaterra, por exemplo. 

No Brasil, apesar do lento desenvolvimento no cenário nacional, o mercado de empreendimentos de Retrofit tem se destacado na cidade de São Paulo. Através do Programa Requalifica Centro, a prefeitura da capital paulista tem autorizado em média 1 obra de Retrofit a cada 18 dias. Esse programa engloba uma série de incentivos fiscais e urbanísticos, a fim de estimular a requalificação dos edifícios ociosos e, por consequência, revalorizar a região central. Em uma iniciativa mais recente, foram promovidos chamamentos públicos de subvenção econômica nos quais, se atendidos critérios específicos, a prefeitura de São Paulo cobre até 25% do valor da obra de Retrofit.  

No caso de Porto Alegre, onde há uma grande demanda emergencial por novas habitações após a tragédia climática, se mostra ainda mais relevante a oportunidade de reaproveitar estruturas já construídas, principalmente as que se localizam no Centro Histórico e seu entorno. Realocar a população vulnerável nessa área densa e consolidada é gerar mais oportunidades de acesso à cidade e tudo que ela tem a proporcionar, visto que é a região com mais infraestrutura de serviços e transporte. Desse modo, também evitam-se novas construções em zonas mais afastadas, que acarretariam mais área impermeabilizada e espraiamento urbano

Centro de Porto Alegre. Foto: Wikimedia Commons

Historicamente, o início do declínio do Centro Histórico de Porto Alegre ocorreu após a enchente de 1941, quando parte da população abastada migrou para bairros em áreas mais elevadas, como Petrópolis e Moinhos de Vento. Na década de 1970, o sistema de proteção contra as cheias do Guaíba foi construído, sendo o Muro da Mauá parte do conjunto. Em 2024, apesar do muro ter cumprido sua função, o Centro foi novamente afetado pelas águas, após uma série de falhas na vedação das comportas e no funcionamento das casas de bombas.

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É de extrema importância o reforço e a manutenção do sistema de proteção para que o desastre não se repita, mas além disso, é indispensável um planejamento para que o Centro Histórico, nossa maior referência simbólica e cultural, seja valorizado e não abandonado. Atrair moradias para essa região é peça chave nessa equação, mas isso deve ser executado de maneira estruturada. Já foram registradas ocupações de prédios tanto públicos quanto privados no bairro, o que pode ocasionar moradias precárias e inseguras, visto que as instalações dos edifícios mostram-se defasadas, principalmente as de proteção contra incêndio. 

O reaproveitamento de edifícios existentes proporciona diversas vantagens para a cidade e para as pessoas beneficiadas, porém vários obstáculos se apresentam nesse cenário. Entre os edifícios públicos há a lentidão e burocracia dos trâmites necessários nesse momento de urgente demanda, além da dificuldade de adaptação da tipologia comercial (com plantas profundas e peles de vidro) para habitação. Entre os prédios privados, as principais dificuldades são os altos custos de transação e a especulação imobiliária, ambos os quais elevam o valor dos edifícios. Nos custos de transação, destacam-se a dificuldade de negociação em imóveis com vários proprietários e os entraves jurídicos (como heranças, espólios e falências). Nesse contexto, o município deve agir na fiscalização de pagamento do IPTU, podendo-se valer de ferramentas legais já existentes, como alíquota progressiva ou até desapropriação, a fim de garantir que se cumpra a função social da propriedade.

Nesse complexo cenário, a questão principal é: como viabilizar o Retrofit desses imóveis ociosos e os destinar à população afetada pela enchente? 

Considerando a morosidade no caso dos edifícios públicos, um possível ponto de partida seria a disponibilização de incentivos para que o setor privado desenvolva empreendimentos de Retrofit, para que parte da demanda seja atendida num período mais curto. 

Em 2021, a Prefeitura de Porto Alegre promoveu o Programa de Reabilitação do Centro Histórico a partir da lei 930/2021, que conta com incentivos urbanísticos a fim de estimular mais investimentos privados na área. Desde então, não houve muitos empreendimentos que aderiram ao programa e, diferentemente do caso de São Paulo, a lei porto alegrense não demonstra um foco em reaproveitamento de edificações existentes. Uma das alternativas para avançar na densificação habitacional do Centro seria complementar a legislação de Porto Alegre com iniciativas já em vigor em São Paulo, voltadas para o Retrofit, de modo a incentivar o setor privado de maneira mais efetiva à produção de unidades habitacionais. Na capital paulista, desde o início do Programa Requalifica Centro, foram 14.378 unidades de Habitação de Interesse Social licenciadas na área de intervenção. 

Imóveis subutilizados no Centro de Porto Alegre. Imagem: Prefeitura de Porto Alegre

O aspecto da viabilidade financeira é uma relevante barreira para o desenvolvimento de habitação de interesse social na região central, visto que o valor de compra desses edifícios é alto e há um limite estabelecido para a venda das unidades pelo programa Minha Casa Minha Vida. Ou seja, a conta não fecha. A possível solução para esse fim seria a subvenção econômica, nos moldes de como é feito em São Paulo, onde até 25% da obra é paga pelo poder público. Está em andamento, na capital paulista, o segundo chamamento público de subvenção. No primeiro, foram 3 empreendimentos selecionados, e é determinado que 60% das unidades beneficiadas sejam de habitação de interesse social.

Outra opção de incentivo financeiro seria a transferência de potencial construtivo dos lotes da região central para outras áreas, subsidiando dessa forma a compra dos edifícios, desde que se consolidem como de interesse social. Uma iniciativa semelhante está em vigor no Rio de Janeiro, onde o empreendedor que produzir unidades habitacionais no Centro recebe um bônus que pode ser transferido para outras zonas da cidade. Na capital carioca, há também avanços no mapeamento de edifícios, com destaque aos de único dono, facilitando a promoção de novos empreendimentos.

Como descrito anteriormente, existem outros obstáculos, além do financeiro, para viabilização do Retrofit, porém, se esse primeiro for ultrapassado, sendo atrativo para investimentos, haverá uma nova motivação para resolver as barreiras burocráticas elencadas. Não se exclui a possibilidade de outros modelos de políticas públicas, como o aluguel social, onde as pessoas são beneficiadas diretamente com o valor da moradia, porém, antes disso, é necessário que as unidades habitacionais sejam construídas ou, no caso do Retrofit, reconstruídas. É preciso ter oferta para atender essa demanda, de modo a beneficiar não somente a população com moradia, mas também o centro da cidade com moradores. Além disso, devido à grande necessidade atual, não será suficiente apenas uma solução, e sim um conjunto delas, com um ponto de partida imediato.

Nessa perspectiva, um grupo de trabalho da Asbea-RS, do qual faço parte, se estruturou para estudar o tema e buscar possíveis soluções. O grupo montou um documento com propostas referentes ao assunto, dentre as quais as já citadas acima, e apresentou à Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade de Porto Alegre, que está avaliando a viabilidade.

É extremamente importante, nesse cenário de crise, que o poder público auxilie a população atingida que não terá possibilidade de voltar às suas casas, mas isso deve ser feito de modo respeitoso e sustentável. Atrair moradias para o Centro é valorizá-lo, reconstruindo-o de forma a priorizar as pessoas.

Rafaela Koehler é arquiteta e urbanista, especialista em Cidades Responsivas e sócia na Sousa Guerra Arquitetura. Liderou por três edições o Freewalk Tour Especial de Arquitetura em parceria com o CAU-RS, onde palestrou sobre a evolução urbana de Porto Alegre para mais de mil pessoas.

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